segunda-feira, 7 de maio de 2012

Sexo burocrático

Ah, o amor! L’amour! L’amour! A coisa mais grandiosa do universo inteiro. A causa e motivo da existência humana. O sentimento sublime, universal e insubstituível que remete à alma sua importância inexorável, e atesta, como prova absoluta e incontestável, a limitação da ciência frente ao desconhecido. O amor. Aquilo que te deixa com a boca seca e as pernas bambas. A gasolina dos poetas; o cianureto dos solitários. O amor. A desculpa que nós, seres racionais, necessitamos para justificar os nossos, nada racionais, instintos sexuais.

O ato sexual, “vias de fato” do amor não-platônico, é uma das maiores evidências de nosso antepassado selvagem/primitivo/animalesco. O sexo é um dos principais pontos em comum entre homens e animais, de várias espécies. Dizem que até mesmo os bichos-de-pé fazem. Todos fazem, e o fazem de maneira bem-parecida. Salvo pequenas e quase imperceptíveis diferenças, o sexo segue regras universais entre as espécies. As aranhas do tipo "viúva-negra”, que assassinam seus parceiros para devorá-los, encontram similares da espécie Homo sapiens sapiens; e as nossas viúvas, apesar de não serem canibais e não devorarem seus maridos, fazem algo semelhante com a herança e as pensões deixadas pelos falecidos. E se você pensa que o “69” é uma posição inventada pela libido humana, saiba que muito antes de Adão dar suas mordiscadas na maçã de Eva, as minhocas – hermafroditas – já estavam cansadas de fazer o “6969”.

O que ocorre na espécie humana, entretanto, é um fenômeno resultante das tendências tecnocratas do séc. XX e dos regimes comunistas com seus planificados sistemas econômicos. Instituiu-se na maioria das uniões civis estáveis o sexo burocrático. O homem/marido/reprodutor precisa comunicar à parceira de suas más intenções com três dias úteis de antecedência, através de comunicado oral, fax, correio eletrônico ou documento impresso com firma reconhecida e certificado “ISO 9002”. Em duas vias. Um memorando assinado pela mulher – e mais cinco testemunhas – confirma (ou não) a aceitação do pedido inicial, especificando data, circunstância e providências a serem tomadas (pelo macho, obviamente) assim como as – muitas – regras de comportamento que ele deve observar no ato mencionado. Na hora marcada (com tolerância máxima de quinze minutos), as roupas vão sendo retiradas segundo uma seqüência ordenada e previamente planejada (pela mulher, obviamente).

Aquecimento, alongamento e preliminares também obedecem ao regulamento. Chegada a hora “H”, as posições executadas fazem parte de um estudo norueguês da relação custo/benefício que investiga dois capítulos da obra “Kama Sutra”, 137ª edição, e somente podem ser utilizadas passando pelo crivo de um ortopedista, um endocrinólogo e uma autoridade religiosa, todos com no mínimo sete anos de experiência no mercado. O orgasmo, quando ocorre de fato e não faz parte de nenhuma encenação possivelmente aprendida em clássicos do cinema pornô-B, como “A ninfeta vai à fazenda”, é conseqüência da estratégia de objetivos preestabelecidos pelas partes envolvidas, e sua duração não deve ultrapassar o tempo previsto no cronograma.

Fato consumado, hora da ducha, do cigarrinho e do “Foi bom pra você?”. E numa próxima vez, que dependendo do caso será dali a alguns minutos, semanas ou encarnações, o casal volta a repetir minuciosamente as mesmas operações; na maioria dos relacionamentos, um procedimento equivalente ao “bater-ponto” dos funcionários de repartições públicas. Daí percebe-se porque um estudo da Faculdade de Ciências Sexuais de Sthrwardsbürg (derivado do anlgo-saxão-tribal-arcaico: sthrwards, que significa “quero ver você pronunciar isso”), na Islândia, divulgou em uma recente pesquisa que a posição mais praticada pelos casais de todo o mundo atualmente. é o “96”.

Um a um

Existem aquelas partidas de futebol que entram para a História. Pois uma que eu jamais poderei esquecer certamente não está entre elas: Brasil e Canadá, 1994. Um dos últimos amistosos da seleção antes da Copa do Mundo dos Estados Unidos.

Eu estava no hall de um hospital no Rio de Janeiro. Minha bisavó estava na cama do mesmo, internada - câncer - aos oitenta e poucos anos. Eu era menino com meus dez e dessa época pouco me lembro, mas aquele jogo jamais vou esquecer. Se você espera que eu cite a escalação do escrete canarinho ou o prenome do juiz, esqueça. Lembro-me, e bem, do futebol ruim apresentado pela seleção, do jogo chato e do resultado: 1 x 1. O país inteiro ficou decepcionado. Como um time que empata com a insossa seleção do Canadá, sequer classificada, quer ter a menor pretensão de ser campeão do mundo? “Impossível” - pensei. Minha mãe, que estivera o tempo todo acompanhando minha bisavó no quarto, me perguntou pelo placar do jogo. Como se eu pudesse não saber: “Um a um” - respondi. Estarrecedor o seu comentário: “Melhor assim, do que a seleção ir pra Copa muito confiante.”. Confesso que achei a opinião de minha mãe um despaupério, mas relevei pelo fato de ela pouco entender de futebol - torce pelo Fluminense, a coitada. Mal sabia eu...

Terminado o ano de 1994, o Brasil havia ganhado o tetracampeonato; minha família havia perdido a sua matriarca. Nada de Galvão Bueno entrando em êxtase ou Dunga levantando a taça, eu me sentia mais como o Baggio após perder o pênalti. Desolado.

A vida é como o futebol. Metáfora medíocre, é verdade, mas válida. A vida é uma caixinha de surpresas e quem não faz, leva. Quando a gente se empolga o bandeira marca impedimento. Quando está sem rumo, vem o zagueiro adversário e deixa escapar a bola, pronta para você chutar para o gol vazio. Sempre tem um beque para pisar no seu calcanhar, mas sempre tem o momento em que seu time arma um contra-ataque oportuno. É só saber agir rápido, driblar os fantasmas, botar entre as pernas do inimigo pra surpreender pela ousadia. Requer treinamento, é claro, mas também se joga por instinto.

Um empate como aquele contra o Canadá pode ser o prenúncio da glória de um título mundial, minha mãe bem sabia. Mas certas derrotas são realmente duras de engolir. Minha bisavó, a vovó Dora, era filha de italianos, personalidade forte. Torcia para o Flamengo, como eu, e fazia um incomparável nhoc (é assim que se escreve?). Seu já falecido marido, Manoel, foi um dos fundadores do Americano de Campos. Minha bisavó contava que ele era goleiro do time e marcou um gol chutando de sua própria área. Feito histórico.

Não sei se comentei que nhoc (!) é o meu prato favorito... E eu nunca mais terei novamente um como aquele da vovó Dora. Todos os meus próximos nhocs tiveram e terão um gosto diferente. Um gosto de empate.

Se o seu fusca falasse

Horário da sesta, eu estava lendo um livro na varanda, o melhor cômodo da casa - sem paredes. A paisagem ao alcance dos meus olhos repousava em extrema harmonia. À exceção dos pássaros cantarolando e de um ou outro transeunte que volta e meia atravessava meu campo de visão, o cenário parecia um retrato, estático. Tudo permanecia na mais absoluta paz. Até que algo me chamou a atenção. Uma família, presumíveis pai, mãe e filha, se dirigiu ao estacionamento, acompanhada pelo meu olhar, e parou em frente a uma cena desagradável: seu carro tinha a porta do motorista bloqueada pelo fusca do garotão do 204, estacionado a um palmo de distância. E, a julgar pelo drama que se instaurou, essa era a única porta que abria pelo lado de fora.

O homem, um negão de dois metros de altura por três de largura, insinuou-se pela brecha estreita entre os dois carros, mas caiu em si quando viu sua perna mal conseguir entrar pela fenda. Aparentemente todos chegaram à conclusão óbvia de que o homem não seria a pessoa mais indicada a tentar abrir a porta. A segunda tentativa foi com a mulher, uma ruiva de farmácia com um vestido curto totalmente fora de moda - e de medida. Ela enfiou o corpo entre os carros e, meio de mau jeito, pôs a chave na porta. Com muito sacrifício, conseguiu uma abertura de cerca de dez centímetros, insuficientes para qualquer ser humano não-subnutrido e não-contorcionista tentar passar. A despeito de seus quilinhos a mais, a mulher ainda tentou se esgueirar para dentro. Tentou introduzir uma perna, desistiu; tentou a outra, sem sucesso; passou aos braços, nada; até que, por fim, meteu a cabeça para dentro, como se imitar uma avestruz embriagada pudesse ajudar em algo.

Ainda sem noção da real dimensão da abertura da porta do carro, a mulher mandou a filha tentar. Esta ainda fez que não com a cabeça, mas rendeu-se à insistência da mãe. Enquanto isso, o homem consultava freqüentemente o relógio, demonstrando uma impaciência que me fazia temer pela integridade física do fusca. A menina, uma pré-adolescente cuja silhueta contrastava com a de seus imensos progenitores, realmente poderia ter mais chance com a porta, mas sua magreza não era suficiente. A de ninguém seria. Constrangida, a garota só se dispôs a tentar o impossível após conferir se não havia ninguém além dos pais observando-a. Esqueceu-se de olhar na minha direção. Sorte a minha, que pude assistir a mais uma autêntica cena cômica. Toda atrapalhada, a menina teve a mesma sorte que sua mãe - tanto no insucesso quanto no ridículo da situação.

Enfim, parecia que a família se convencera de que aquele não era o melhor caminho para solucionar o problema. Pararam, olhando desolados para o maldito fusca e trocaram meia dúzia de palavras. A filha então saiu de cena, para chamar o porteiro. Chegando este ao estacionamento, foi abordado pelo homem, que provavelmente o pediu para interfonar para o dono do fusca a fim de fazê-lo retirar seu indesejável automóvel (se é que assim se podia chamar aquele fusca branco-sujo com vidros negros e adesivos variados, entre eles um Piu-Piu no capô, um Calvin urinando na traseira e alguns escudos do Flamengo espalhados pelos vidros laterais). Minutos mais tarde, tudo indicava que ninguém atendia no apartamento 204. Os quatro, a família mais o porteiro, estavam parados diante dos dois carros, prossivelmente caçando no ar uma idéia que solucionasse o caso. Da minha varanda pude fazer a leitura labial de um ou dois (ou três...) palavrões na conversa que travavam entre si, entre gestos enfurecidos. Se eventualmente eles tinham algum compromisso, poderiam se considerar definitivamente atrasados: no mínimo meia hora já se decorria daquela triste situação.

Foi então que se fez a luz, mas não para eles, para mim. Tive uma simples, porém brilhante, idéia que poderia dar cabo àquilo tudo. Levantei-me num impulso involuntário e quase gritei da varanda a solução que permitiria à família entrar em seu carro. Alguma coisa fez com que eu me retraísse; talvez o constrangimento de introduzir-me na vida alheia, talvez uma sádica vontade de assistir mais um pouco àquela novela da vida real. Não fez muita diferença. Antes mesmo que eu pudesse me sentar novamente, o pai, o armário duplex, dirigiu-se até o porta-malas do carro, abriu-o com a chave, e com um tanto de esforço inclinou-se para dentro e levantou o pino de uma das portas traseiras. Fiquei frustrado. Telepaticamente, o homem havia se apropriado da minha idéia, sem pagar royalties nem direitos autorais. E ainda acabou com a minha diversão vespertina.

A família embarcou e foi embora, o porteiro retornou à portaria, e eu voltei a ler meu livro. Não mais que duas páginas mais tarde, algo volta a quebrar a monotonia da paisagem: um rapaz com cara de sono, sem camisa, de boné virado e bermuda caída revelando metade da ceroula, caminha pelo estacionamento e abre seu carro, um fusca branco.

Aristeu

- Tua vez.
- O quê?
- Tua vez.
- Vez de quê?
- Você assovia uma música e eu adivinho qual é. Esqueceu?
- Ah, não, Aristeu! Chega dessa brincadeira.
- Tá com sono?
- Estou.
- Vai, só mais uma... é a última!
- Tá bom. Fiii-Fi-Fiu-Fi-Fiu...
- Fácil. “Saudosa Maloca”.
- Não.
- Assobia de novo pra ver se eu pego.
- Fiii-Fi-Fiu-Fi-Fiu-Fiu...
- É aquela do Queen?
- Não.
- Se for “Love Story”, você assovia muito mal!
- Não é.
- Diz só se é nacional ou internacional...
- É nacional, Aristeu, nacional.
- Eu já esqueci a melodia, dá pra você mandar mais uma vez?
- Fiii...
- Lembrei, lembrei.
- Então...?
- Então, o quê?
- A música, Aristeu!
- Você tem certeza que eu conheço essa música?
- Absoluta.
- Só vale música conhecida e essa aí parece aqueles sambas-enredo da Vila, de antigamente... Você sabe que eu não conheço nada de samba!
- Não é samba, Aristeu. Chega! Eu vou dormir.
- Não! Assobia pela última vez que agora eu mato!
- Fiii-Fi-Fiu-Fi-Fiu-Fiu...
- “As Quatro Estações”?
- Do Legião?
- Do Sandy & Júnior.
- Não!
- Do Legião, então?
- Também não!
- Então por que perguntou?
- Eu vou dormir.
- Nada disso!
- Acaba logo com isso, Aristeu. Pelo amor de Deus!
- Tá bom. Vai lá.
- “Vai lá”, o quê?
- Assovia, meu canário!
- Ai! Que saco! Fiii-Fi-Fiu-Fi-Fiu-Fiu...
- Já sei!
- Fala!
- Já sei! Já sei!
- Fala, criatura!
- É uma do Cris Duran.
- Nacional, Aristeu!
- Cris Duran não é brasileiro?
- Claro que não!
- Pensei que ele cantava em castelhano só de onda... Assobia de novo.
- Fiii-Fi-Fiu-Fi-Fiu-Fiu...
- Eu já sei que música é.
- Então fala!
- É aquela... do gato...
- Poxa! Até que enfim, Aristeu!
- Sabia! “Negro Gato”, Roberto Carlos.
- Que “Negro Gato”, o quê, Aristeu?!
- Não é?
- Não!
- Mas você falou...
- Não é “Negro Gato”, Aristeu. Chega! Você perdeu. Vou falar qual é.
- Nada disso. Me dá uma última chance. Se eu errar você pode falar.
- Vou te dar a última chance. E acabou! Fiii-Fi-Fiu.
- E o resto?
- Fiii-Fi-Fiu-Fi-Fiu-Fiu...
- “Volta, meu amor”, Tonico & Zé Rico!
- Tonico & Zé Rico?
- Isso.
- Não seria Tonico & Tinoco?
- Não, seria Milionário & Zé Rico.
- Errou.
- “Mina de Fé”, dos Morenos?
- Não.
- “Papai me empresta o carro”, da Rita Lee?
- Não, Aristeu! Chega! Acabou! “Atirei o pau no gato”!
- Como assim?
- O nome da música é “Atirei o pau no gato”, Aristeu, conhece?
- Poxa, era a próxima que eu ia falar... Bem, agora é minha vez de assoviar uma música! Deixa eu pensar...
- Boa noite!
- Isso!
- “Isso”, o quê?
- Eu estava justamente pensando em “Boa Noite”, do Djavan.
- Boa noite, Aristeu. Vou dormir.
- “Atirei o pau no gato”...
- Que que tem?
- Francamente! Que falta de imaginação... E eu pensando que era do Queen...
- Aristeu...
- Hum?
- Vai dormir! Boa noite!
- Boa noite!
Um minuto depois:
- Você conseguiu, Aristeu! Perdi o sono! Aristeu...? Aristeu...? Dormiu.

Veneza tupiniquim

São seis horas da tarde. O céu ainda deveria estar claro devido ao horário de verão, mas estas dezoito horas de uma sexta-feira de janeiro são seis horas da noite. As nuvens, carregadíssimas, adiantaram em algumas horas o entardecer e o ar quente de verão transformara-se agora num vento frio e úmido, daqueles que tornam gélidas as orelhas do mais aquecido dos cristãos. Começa a chuviscar. Aos poucos, as gotículas que vinham caindo aqui e ali ganham volume e velocidade. Chove torrencialmente - tio Eusébio diria que chovem cântaros.

A avenida Dias da Cruz, no subúrbio carioca, está em estado de calamidade. Os camelôs, que em outras épocas ocupavam toda a sua extensão e hoje contentam-se com as ruelas transversais, recolhem suas valiosíssimas mercadorias importadas. Os pedestres que foram pegos de surpresa tentam abrigar-se sob as - felizmente muitas - marquises das famosas lojas do Méier. O trânsito, que neste horário já se encontraria naturalmente congestionado, estava atrofiado, bloqueado, estagnado; uma massa sólida entupindo as ruas, feito o quinto biscoito de água e sal engolido à seca. Tamanho engarrafamento fazia com que a impaciência subisse à cabeça dos motoristas e se expressasse num longo e sonoro buzinaço. Ouvidos mais bem-treinados conseguiriam identificar, em meio à barulhenta sinfonia dos carros, imperceptíveis acordes da introdução do hino do Cabofriense. Em “lá” menor.

Enquanto isso, alguns relâmpagos reluziam no céu, cada vez mais escuro, seguidos de estrondos tenebrosos - dignos de um filme de terror japonês. As gotas d’água haviam se transformado em rajadas de metralhadora. Mais pareciam jatos de um grande chuveiro, lavando toda a impureza dos homens como no dilúvio testemunhado por Noé.

Um senhor de meia-idade, vestido por um agora ensopado terno azul-marinho, tentava falar ao celular sob a fachada da C&A. Ao avistar um dos amarelinhos táxis cariocas dando sopa por perto, avançou sobre ele como um tigre à sua presa. Deu de encontro com um moleque de cerca de onze anos de idade que vinha correndo pela calçada, e com isso deixou cair seu telefone na poça d’água. O Nilo urbano, formado pelo entupimento dos bueiros da avenida, já havia carregado o celular para bem longe quando o menino pediu desculpas pelo transtorno (“Foi mal aí, tio!”) e voltou a correr no segundo seguinte. Felizmente o táxi estava disponível e, a julgar pela expressão do homem, isso era mais importante que o telefone perdido, a essa altura dos acontecimentos.

Uma jovem mulher vinha correndo pela chuva, trazia uma menina pequena no colo, uma sacola de supermercado e um outro menino maiorzinho agarrado a ela. Tentava desesperadamente alcançar o “249 - Centro” que estava partindo do ponto de ônibus. O máximo que a mulher conseguiu foi um belo banho de lama, causado pelas rodas daquele coletivo, ao arrancar, sem ela, rumo ao seu destino.

Do outro lado da avenida, uma senhora circunfericamente bem-fornida caminhava apressadamente, empunhando uma florida sombrinha e algumas bolsas de compras. Lia-se em seus olhos castanhos, sob a grossa lente dos óculos, a vontade de naquele momento estar em casa, seca e aquecida no sofá, vendo a novela das seis. Repentinamente alguma irregularidade da calçada fez com que ela tropeçasse e caísse em pé, meio desequilibrada, sobre as poças nas margens da avenida. Alguns passos sobre o desconhecido e eis que ela pisa em um bueiro destampado. Devido aos seus muitos quilinhos a mais, ela se vê completamente entalada no buraco, parte de seu corpo submerso nas águas imundas daquela chuva de verão. Num misto de constrangimento e desespero, ela tentava sem sucesso libertar-se da situação.

Deparado com a tal cena, um rapaz alto e forte, com uma camisa desbotada do Vasco da Gama, se aproximou da senhora entalada e ofereceu-lhe a mão. Enquanto ela se sentia aliviada pela perspectiva de uma ajuda caridosa, o homem agarrou suas sacolas e sua sombrinha, arrancou-as das mãos da senhora e saiu correndo, se perdendo no horizonte daquela caótica Veneza tupiniquim.

A porta dos desesperados

“Oh! Que saudades que eu tenho da aurora da minha vida!”, daqueles tempos remotos em que eu, inocente, quando perguntado sobre o que queria ser quando crescesse, respondia oscilando entre astronauta, piloto de Fórmula 1 e presidente da República.

Naquela época, eu não fazia a menor idéia do que era a N.A.S.A., só pensava em fincar a bandeirinha brasileira no solo lunar. Era essa a imagem que eu tinha de um astronauta. Nada de Física, cálculos matemáticos, nada de formação militar. Seria só vestir aquelas roupas, andar que nem um jabuti bípede e espetar a Lua com nossa flâmula verde-e-loura-imponente. Não devia ser muito difícil.

Essa mesma bandeirinha eu bem poderia empunhar quando cruzasse a linha de chegada de um Grande Prêmio, chegando em primeiro. Cansei de ver o Senna fazer isso. Todo santo domingo era a mesma história: o nosso herói, com o boné do extinto Banco Nacional e a bandeira brasileira, no lugar mais alto do pódio, tomando banho de champanha. Aquela musiquinha tocando ao fundo e o Galvão Bueno se esgoelando. Que criança nunca sonhou com a Fórmula 1? Pilotar não devia ser assim tão complicado, afinal, se a minha mãe rasgava o asfalto com o nosso Fiat 147, nada me impedia de voar ao volante de um daqueles carrões. Se eu tivesse tido o Rubinho como exemplo, talvez eu me convencesse logo de que automobilismo é coisa para alemães, e pudesse esquecer mais facilmente esse meu sonho.

Outros foram os motivos que me levaram a desejar ser presidente da República. Não devia ser nada mau um cargo disputado à unha pelos políticos mais importantes do Brasil. O verde-e-amarelo, neste caso, viria em forma de faixa presidencial, mas estaria lá. O impeachment de Fernandinho quebrou um pouco o encanto, mas de todos os meus sonhos de infância, este é o único que ainda permanece. Talvez seja uma inocente vontade de mudar o mundo que eu ainda não tenha conseguido eliminar totalmente em mim.

Quando me vi no pré-vestibular, já estava com todos os meus conceitos sobre profissões totalmente dilacerados. Aprendi a levar outros fatores em consideração para fazer minha escolha, como o mercado de trabalho e as possibilidades salariais. Sei que o mundo não é tão fácil quanto fincar uma bandeira na Lua parecia ser. Fazer opção por um curso, decidir a universidade, escolher um caminho a seguir... parece até a “Porta dos Desesperados”, aquele extinto quadro do antigo programa do Sérgio Mallandro, onde atrás da porta que se iria abrir poderia ter um prêmio ou um monstro.

Alguns dizem que a idade com que se encerra o Ensino Médio e se escolhe o curso universitário é muito prematura para que os indivíduos, adolescentes, tomem uma decisão tão relevante para seus próprios futuros. Dizem que ainda não há maturidade suficiente para tal escolha profissional. Eu acredito que, pelo contrário, é muito tarde. Todos deveríamos decidir nossas futuras profissões quando fôssemos crianças, “no despertar da existência”. Talvez assim houvesse mais prêmios do que monstros atrás das portas, e - quem sabe? - o mundo fosse melhor.

Congestionamento

Existem na vida aquelas situações propícias às mais profundas reflexões, quando nós colocamos em xeque todas as idéias e teorias - de Karl Marx a Sigmund Freud - que nos aplicaram, mesmo que superficialmente, no período da escola. Lembro-me bem da querida e saudosa professora Marta, uma mulher inteligentíssima que me despertou às questões mais paradoxais da natureza humana.

Dia desses fui surpreendido por uma dessas situações. Segunda-feira, meio-dia, linha 004, sétimo banco da fila da esquerda (aquela atrás do motorista), janela. A despeito do horário, o ônibus estava ligeiramente vazio. Já o meu estômago, em respeito ao horário, estava vazio por completo. Lá fora, a avenida totalmente congestionada. Por dez minutos estivemos num mesmo quarteirão. Sem mais o que fazer, pus-me a observar os carros parados sob a minha janela. E a refletir.

Qual não foi minha excitação quando me dei conta de que os três carros enfileirados ao lado do ônibus eram da mesma marca, mesmo tipo, e possivelmente até mesmo ano? Caso ainda fossem daqueles modelos populares - motor 1.0 com 1/2 pangaré subnutrido de potência - eu nem me espantaria tanto com a coincidência, mas eram três Honda Civic: um prateado, um verde e um “cor de capuccino”, este último mais encardido. Após alguns não breves instantes de observação, entretanto, pude constatar que as diferenças entre os veículos talvez estivessem a chamar mais atenção que as semelhanças que me atraíram de início.

No primeiro, o Honda prateado, um homem de terno preto e gravata vermelha batucava qualquer coisa contidamente, fazendo o volante de atabaque improvisado. Ar-condicionado (vidros fechados), música alta, sozinho no carro. Uma lata de Coca-Cola e o celular à disposição. Quem se importa com o engarrafamento? Adorei ver, no vidro traseiro, um adesivo: “Direito - Ufes”, o curso e a universidade onde pretendo estudar. Estaria eu prevendo o meu próprio futuro? Seria aquele cara de gravata vermelha uma espécie de materialização parapsíquica de um “eu do amanhã”? Sonhar não custava.

No segundo carro, o verde metálico, assim como no primeiro o motorista curtia uma tranqüila solidão (que desperdício de recursos não-renováveis, heim!). Este, contudo, parecia um pouco menos à vontade que o primeiro. A janela estava aberta, pois ele fumava um Mallboro (vi o maço sobre o painel), e não parecia estar ouvindo música. No banco de trás, um folheto com as ofertas do Carrefour e uma merendeira - ou lancheira, pelo menos era assim que se chamava na minha época - das Meninas Superpoderosas, ou besteira similar. Pai de família, pensei. Barba por fazer grisalha, óculos de cordinha pendurado. Camisa regata, bermuda e chinelo. Ou era o seu dia de folga, ou tratava-se de um aposentado. Imaginei um consórcio de eternas prestações para se comprar aquele carro e a família reunida na pizzaria para comemorar a aquisição. As crianças entornando o guaraná sobre a mesa, com a camisa suja de catchup.

No terceiro carro, o “cor de capuccino” empoeirado, finalmente mais de uma pessoa. E para compensar a solidão dos anteriores, desta vez eram seis ou sete, espremidos. O motorista usava um terno desajeitado com uma gravata tirada de um filme trash sobre sua generosa pança. O cinto de segurança dividia tanto a gravata quanto a barriga em suaves prestações, e limitava ainda mais os já desajeitados movimentos do sujeito. No carona, uma mulher muito magra, de saia longa e camisa de botão; nenhuma maquiagem, Bíblia aberta ao colo, lábios a balbuciar as Palavras do Senhor que o dedo acompanhava com dificuldade. Lá atrás, um fenômeno da densidade demográfica: passeando os olhos sem qualquer critério cheguei a contar onze cotovelos, mas desacreditei-me perante o absurdo do número. Tentei um palpite: um pastor evangélico dando carona a alguns de seus fiéis em seu carrão importado.

Estava divagando sobre os três carros, com a lentidão do fluxo já quase formulando uma tese de mestrado - o título seria: “Automóvel: a panacéia da sociedade contemporânea” - quando me deparei com um adesivo no vidro traseiro de um outro carro, logo mais atrás: “Enfermagem: Uma opção pela vida". O carro era um Chevette, muito velho, tipo “quinto dono”. O motorista solitário - mais um - vestia camisa, jaleco e sapatos brancos, além de um jeans desbotado. Parecia abatido e apressado. A síntese do proletariado.

Aqueles quarenta minutos na Avenida Champagnat (nem queira saber como se pronuncia) foram de profunda reflexão. Quase decidi tentar o curso superior de Sociologia, mas retraí-me ao lembrar-me do cidadão de gravata vermelha com seu carro prateado e vislumbrar a provável lata-velha de um sociólogo - obviamente me refiro a um que não tenha sido eleito e reeleito presidente do Brasil.
O trânsito estava ainda mais congestionado. Meu estômago, ainda mais vazio. Meu cérebro, cansado dos elementos daquela cena. As filas de carros do lado pareciam andar muito mais rápido que aquela onde estava o meu ônibus. Os Hondas já deveriam estar a uns dois ou três quilômetros à frente. Apoio novamente a cabeça no vidro trepidante da janela. Melancolia.

E então surge, mais que repentinamente, o Messias. A salvação do meu dia. A antítese de todos os preceitos sociais vigentes, uma dádiva coroando minha análise socio-filosófica. Imponente e veloz, entre os carros estáticos, eis que aparece uma bicicleta, e sobre ela, vejam só: um gari. Spartacus mulato, com o uniforme laranja fluorescente da prefeitura, vasto bigode. Ultrapassando com sua simplicidade - e sua bicicleta velha - todos os carros, inclusive um Chevette, três Hondas e o meu ônibus. A vitória da ética e humildade proletária sobre a burguesia neoliberal. Algoz dos paradigmas e conceitos de sucesso; agente relativista dos dogmas capitalistas. Um verdadeiro representante da classe trabalhadora em seu autêntico meio de transporte. Econômico, ecológico, ecumênico. Uma Caloi.

O estômago ronca, interrompendo-me os devaneios, e passo a prestar mais atenção às pessoas dentro do ônibus. As pobres condenadas, como eu, a utilizar nosso malfadado transporte coletivo. Fora a maioria de estudantes, havia uma gestante, um garotão voltando da praia, duas velhinhas e... Peraí! Eu conheço aquela mulher ali no banco da frente...
- Professora Marta, como vai a senhora?

Prefácio: As dores do parto


Tudo começou quando eu era um pequeno infante da sexta série e minha turma saiu de sala para nobre missão: cada aluno teria de plantar uma árvore no jardim da escola. Na época aquilo não significou nada além de uma aula de ciências um pouco mais elaborada, mas anos mais tarde fui descobrir que um terço de minha missão terrena havia sido concluído naquele dia. Segundo a sabedoria popular, depois de plantar uma árvore, faltava-me apenas escrever um livro e ter um filho, para dar por completa minha passagem sobre a Terra.

Desde os meus cinco anos de idade que gosto de escrever. De lá pra cá, posso dizer que meu estilo se modificou um pouco - entre as mudanças mais relevantes nos meus textos, estão a grafia do “Z”, que agora escrevo virado para o lado correto e a do “E”, que aprendi a fazer com apenas três riscos horizontais. Escrever um livro foi algo que sempre quis fazer. Aos nove, inventei estórias sobre alienígenas, aos onze, eram jogadores de futebol invencíveis e aos quatorze, finalmente atingi a maturidade criativa: passei a dar mais importância aos textos que às ilustrações. E desde então venho procurando manter a atividade de escriba em dia, escrevendo por hobby, cartas, diários, artigos, crônicas.

Num daqueles dias absolutamente comuns, uma professora me veio com a idéia: “Por que você não junta esses seus textos numa compilação?” e, desta forma, condenou as prateleiras improdutivas das bibliotecas à ocupação de mais um livro. Paralelamente aos meus estudos para o vestibular, à realização das provas e à expectativa de começar a cursar a universidade (ou vocês estão pensando que um livro se faz de um dia para o outro?), revisei antigos textos e escrevi muitos outros novos, num processo que me custou noites a fio diante do computador, alguns graus a mais de miopia, comprimidos para dor-de-cabeça e uma tendinite no pulso direito.

Dizer que se está escrevendo um livro é algo que pode causar estranheza nas pessoas, mas é uma das frases mais proveitosas para quebrar o gelo da falta de assunto em uma conversa. Difícil mesmo era explicar para as pessoas que meu livro não é sobre nenhum assunto específico - ou sequer um romance - mas uma coletânea de crônicas sobre os mais variados temas. Desde estórias corriqueiras que povoam meu cotidiano e minha memória, até prolixas divagações sobre intrigantes assuntos, meu objetivo sempre foi reunir textos diferentes entre si (pelo menos na tentativa de evitar a monotonia).

Muitos duvidaram, entre eles, eu mesmo. Mas muitos, por outro lado, acreditaram que eu conseguiria. Agora, tentando lembrar de supetão, não consigo citar ninguém - acho que a minha mãe, talvez - mas o que importa é que eu consegui. Finalmente eis um projeto meu que saiu do papel, ou melhor, neste caso, entrou no papel. Está aí, nas suas mãos, meu livro, que não me deixa mentir. Aleatório como deve ser nosso humor, nosso ânimo e nosso estado-de-espírito. Aleatório como devem ser nossas experiências a cada dia. Aleatório como a vida deve ser.

Agora falta o filho.